Fiz uma postagem manifestando a minha posição a respeito da “vontade” estatal de controlar as redes sociais e isto causou uma polêmica e um retorno de mensagens maior que a minha capacidade de responder individualmente a cada pessoa. Resolvi escrever este despretensioso artigo detalhando a minha posição e assim ganhar este tempo que dedicaria às respostas individuais.
Iniciando, eu quero dizer que a minha luta, e a luta de todos os que racional e isentamente defendem a liberdade de expressão no país, é uma luta praticamente perdida. Ou por força de uma nova iniciativa legislativa ou por uma decisão do STF, que sabemos, hoje se tornou um aliado conveniente do executivo (por razões algumas vezes nobres e em outras questionáveis), uma hora ou outra as redes sociais serão reguladas da pior forma possível. Quanto a este adjetivo “pior” eu irei depois dedicar também algumas linhas e enquanto não o faço quero afirmar que sim, existem formas melhores de regulação que a proposta pelo Governo brasileiro ou, pelo menos, formas mais honestas.
Primeiro, para quem não me segue nas redes sociais, vou resgatar o conteúdo da postagem. Comentando uma notícia que dizia que o Presidente da República ia convocar uma força tarefa para dar uma resposta à META pela mudança da sua política quanto à checagem de fake news, eu escrevi:
Quem me conhece sabe o quanto sou crítico do modelo estatal brasileiro de regulação das redes sociais, mas… admito, o governo brasileiro não descansará enquanto não limitar a liberdade de expressão dentro de parâmetros políticos. Falo isto mesmo sendo eleitor do Lula, em quem vejo inúmeras virtudes, e de me considerar uma pessoa progressista. Este “comichão” autoritário que o poder causa é algo quase irrefreável e esta vocação não tem cor nem bandeira, todo poder quer ser absoluto”.
Bem, a modesta postagem causou reações violentas e raivosas vindas, às vezes, de gente cega pela ideologia, às vezes, de gente politicamente interessada.
Antes de continuar, para não esquecer, quero pontuar dois temas que pretendo desenvolver melhor depois:
a) se você é um político que se encontra no poder, eu entendo e até acho legítimo que defenda a regulação nos moldes propostos, você está coerente com o seu campo político e com os objetivos funcionais que ele busca.
b) Se você não é político e é um jurista que estudou o direito sob o viés constitucional brasileiro sem nenhum compromisso com a implantação de um modelo de Estado que pretenda ser hegemônico, seja de direita e de esquerda, tem que repensar sua posição quanto à submissão das redes sociais ao Estado.
Bem, a própria promoção do modelo de controle das redes, como se faz hoje no discurso estatal, como sendo um modelo contra a mentira simplesmente, é uma fake news, uma mentira. Como disse, é uma mentira política e, portanto, neste campo, perdoável, mas é uma mentira.
O objetivo da luta estatal pela regulação das fake news é político, claramente, e isto não é algo que ocorre somente no Brasil. Como tratei já em alguns trabalhos, o Estado moderno se estruturou sobre o controle físico e a possibilidade de violência física que se enfraqueceu muito nesta última revolução causada pela internet. A luta estatal no intuito de recuperar o seu espaço de poder é até legítima e compreensível, portanto, mas o objetivo da guerra às fake news está longe de ser uma guerra contra a mentira. O objetivo que não se declara publicamente é calar aqueles que são diagnosticados (e depois tratarei sobre a dificuldade deste diagnóstico) como tendo um campo político perigoso, hoje tratados genericamente de “extremistas”, e tirar destas pessoas o direito à voz. Podemos até achar que esta é uma guerra santa, fundada em bons propósitos, mas não é, definitivamente, uma guerra democrática nos cânones da constituição de 1988.
Mas por qual razão um modelo que pretende acabar com o artigo 19 do Marco Civil da Internet é o pior possível?
A resposta curta é: pelo fato de criar a pior das censuras, a censura terceirizada, modelo no qual o Estado não exerce diretamente a violência que, portanto, fica despercebida. No modelo proposto quem exercerá a censura serão as Big Tehcs que, se não exercerem tal FUNÇÃO, serão punidas.
Este modelo apresenta ainda mais dois absurdos:
A) A impossibilidade técnica de controle total: As Big Techs não conseguem controlar de forma eficiente e consciente todos os discursos em seus canais. O monitoramento será frequentemente linguístico, semântico e, muitas vezes, realizado por inteligência artificial. Isso significaria que cada usuário seria submetido a um julgamento constante por uma IA, que censuraria e julgaria sua fala para evitar punições às empresas. A ineficiência desse monitoramento resultaria em erros e arbitrariedades na aplicação de normas.
B) A arbitrariedade da censura: Mesmo com o monitoramento por humanos, o que se admite apenas por argumentação, o poder de decisão sobre o que é aceitável ou não recairia sobre funcionários das Big Techs que, em suas rotinas diárias, poderiam silenciar discursos sem amparo legal ou justa causa no intervalo entre um e outro cafezinho.
A principal questão permanece: quem será o “semideus” que definirá o que é verdade ou mentira? Quais os parâmetros de censura? Quem estabelecerá o rótulo de “bom” ou “mau”, “verdade” ou “mentira” para os bilhões de conteúdos postados diariamente? Esta é uma questão filosófica que não é tratada por ninguém que defende a regulação por uma simples razão, NÃO INTERESSA. A despeito do discurso público de que vivemos uma guerra contra a mentira, existe a convicção entre os defensores ativos da regulação das redes de que a distinção será apenas política. Quem falar o que o Estado entende que deva ser falado estará falando a verdade; quem falar coisa diferente deverá ser calado. A história está aí para mostrar como agem os Estados quando lhes é dado tal poder !
Nos encontramos agora no meio de uma polêmica que é exemplar: o controle das transações via pix servirá para taxar pessoas que hoje não são tributadas? Bem, neste caso, como em outros, existem meias verdades sendo veiculadas por todos os campos. De fato, quando você mandar um pix NÃO VAI CHEGAR NA HORA UM BOLETOU OU DARF PARA VOCÊ, quem disser isto está mentindo. Mas é mentira também dizer que não muda nada. Muda, claro que muda. Alguém seria ingênuo o bastante para acreditar que o governo não vai usar estes dados para atingir pessoas que eventualmente ganham mais que o limite de isenção e que não são taxadas pois usam movimentação via pix ? Claro que vai e eu acho até legítimo que se faça isto.
No sistema ideal de controle pelo qual suspiram os Estados, com certeza, no exemplo acima, quem contasse a primeira mentira seria severamente censurado. Quem contasse a segunda, teria a grata felicidade de ter redes sociais somente para sua versão dos fatos e, por consequência, engajamento fantástico. É preciso entender que, exatamente pelo fato de versões diferentes fazerem parte do campo da linguagem na política — política que se interessa menos com a verdade e mais com os efeitos práticos do discurso — é possível admitir que um político minta, tentando atingir objetivos que entende como elevados e que justificam sua inverdade, o famoso “fins que justificam os meios”. O que não podemos concordar é que políticos queiram ter o monopólio de contar somente suas mentiras e calar as mentiras alheias.
Outra questão muito grave é que, pela intangibilidade dos algoritmos, a censura pode até ser “velada”. Num cenário ideal, os “propagadores de fake news” não são excluídos do canal, nem recebem braceletes de banidos. Eles simplesmente não são “publicados”. Alguém faz uma publicação dizendo que o controle das transações via PIX pode sim implicar em taxação maior no futuro e não recebe nenhuma mensagem dizendo que a postagem foi censurada, mas, como já foi julgado e condenado como potencial mentiroso, a consequência, intangível, é que a mensagem fica confinada em seu feed e não é direcionada para o de mais ninguém.
A censura prévia é odiosa exatamente pelo fato de ser sumária e ineficaz em seu principal objetivo que é valorizar a verdade. Vejam que, até para condenar pessoas que cometem crimes contra a vida, garantimos um devido processo legal. A censura algorítmica é absolutamente medieval, pois aplica a condenação prévia, mesmo antes do crime ser cometido, pelo simples risco da infração.
Precisamos, enquanto juristas, buscar uma suspensão epistemológica de nossos gostos pessoais. Como diz Luhmann, Direito e política são sistemas diferentes, apesar de comunicantes. Não dá para exigir que os políticos façam política usando a linguagem do direito, mas o direito é um sistema normativamente fechado e cognitivamente aberto, o que significa que se concentra numa autorreferência através de conceitos e só se comunica com o campo da política através da assimilação de interesses. Em suma, mesmo aberto aos demais sistemas que compõem a sociedade, o direito não pode ser subserviente a estes, e muito menos subserviente aos interesses políticos (razão pela qual Luhmann foi algumas vezes taxado de amoral). Este é o conceito de autonomia do Direito presente tanto no pensamento de Luhmann como na teoria da linguagem de Jürgen Habermas. Comparando a teoria sistêmica ao cenário brasileiro, o Douto professor Marcelo Neves diagnosticou que, em nosso país, “não se constituiu uma autonomia sistêmica nem ético-procedimental do direito e, portanto, não se realizou o Estado de direito”. E, pelo visto, nunca se realizara.
Aliás, tanto em Luhmann quanto em Habermas encontramos como pontos em comum: uma tentativa de entender a hipercomplexidade social , que gera, empiricamente, dissensos em torno de conteúdos morais na modernidade. Habermas, aliás, discute a construção do consenso em boa parte de sua obra e propõe que este consenso se dê através do diálogo racional e argumentativo, que, obviamente, segue em linha absolutamente oposta a qualquer tipo de censura.
Eu teria muito mais para dizer, mas não quero que este artigo fique muito longo. Quero, entretanto, responder aqui algumas questões que me foram colocadas, até pelo fato de replicarem inúmeras falácias que todos os dias são veiculadas nos sistemas de comunicação e que, como já disse, mesmo que possam servir a objetivos políticos considerados bons, não deixam de ser falácias. Selecionei duas mensagens bem representativas:
Seguidor 1: …você é a favor desta aberração que é a liberdade absoluta das redes sociais? Essa gente de extrema direita usa as redes sociais para todo tipo de crime. Buscar reparação nas leis vigentes não é eficaz. Tenho um grande amigo que teve sua filha violentada por abusos e mentiras nas redes sociais, e não deu em nada abrir um boletim de ocorrência, ação de dano moral, nada teve qualquer utilidade. Estamos armando os criminosos em um ambiente em que eles dominam e não conseguem ser punidos.
E
Seguidor 2: …Professor, até a liberdade de expressão tem limites. Ninguém está falando em censurar as pessoas, mas em submeter as big techs. Só quem irá sofrer serão aqueles que pretenderem cometer crimes; nós que não pensamos em cometer crimes não seremos atingidos. Fascismo é crime.
Eu respeito muito este tipo de manifestação que traduz sentimentos comuns a todos nós como o medo diante dos crimes que podem ser cometidos pelas redes, a antipatia pelas big techs que acumulam bilhões de dólares e parecem querer dominar o mundo, e a sensação de impotência diante da tecnologia. Mas, como disse, são posições baseadas em falácias, como as que afirmam que “somente criminosos serão atingidos” ou que “a regulação é contra as big techs” e não contra a população — argumentos psicológicos que não resistem a uma breve reflexão racional.
Como dito, não acho que exista liberdade absoluta nas redes sociais. Temos a Constituição (que veda o anonimato), o Código Penal e centenas de leis extravagantes que existem exatamente para punir quem usar as redes para o cometimento de crimes ou ilícitos de natureza civil. Se estas leis não funcionam, não será uma nova lei que terá o condão de sanear todo o sistema penal.
O que querem os defensores da regulação é uma censura prévia, que seria uma excelente ideia se tivéssemos um semideus acessível para dizer o que é verdade e o que é mentira em algumas centenas de milhões de conteúdos postados por segundo nas redes. Só o uso da palavra “extrema direita”, tão comum para designar as pessoas que serão punidas na “regulação”, já demonstra as motivações ideológicas por trás da convicção. Temos extremismos em todos os grupos políticos e em todos os casos os extremos que resultem em eventos delituosos devem ser punidos. Mesmo quem se alinha a um grupo político que está no poder, deve lembrar que no futuro pode ser que o cenário mude e a mesma lei pode ser usada contra os seus criadores. Inventores de guilhotina guilhotinados já existiram muitas vezes na história.
Também sinto indignação com a impunidade de criminosos virtuais. Mas vejam, este é um problema de política criminal no país, e não de falta de leis. As estatísticas mostram que punimos uma porção mínima das pessoas que atentam contra a vida, por exemplo. Dados veiculados no jornal O Globo na edição de 11 de novembro de 2024 indicam que 61% dos homicídios ocorridos no Brasil em 2022 não foram solucionados. Com um aparelho policial mal estruturado um delegado tem que fazer uma “escolha de Sofia” ao decidir qual caso ele tem que priorizar com seus parcos recursos investigativos.
Mesmo reconhecendo a existência de problemas, abrir portas para um sistema prévio de punitivo, sem processo judicial, sem ampla defesa, não é solução jurídica. Na ciência criminal a própria ideia de crimes de perigo tem sido questionada; por qual motivo devemos normalizar a hipótese de culpabilização pela simples inclinação potencial do indivíduo a vir a cometer um crime? Eu sei que todos adoraríamos um sistema penal ao estilo Minority Report, no qual a sociedade ficasse livre dos criminosos antes do cometimento de crimes; mas, vejam, nem na ficção isto deu certo.
Em outras palavras, se alguém usar a sua liberdade de expressão para ser racista, transfóbico, incitar ou praticar crimes, deve ser punido com todos os rigores da lei. Mas é teratológico se pretender calar previamente alguém com a justificativa de que, se ele não falar, não praticará o crime. Isto equivale, no domínio da linguagem, a prender alguém previamente para que no futuro não cometa um assalto ou um assassinato.
Para a conduta acima, temos um nome: censura, figura típica de regimes autoritários e que até bem pouco tempo era odiada por todas aquelas pessoas que se diziam progressistas e intelectualizadas. A respeito, a pesquisadora Genevieve Lakier, da Universidade de Chicago, tem um fundamental trabalho denominado “The Great Free-Speech Reversal“, no qual demonstra como grupos políticos odeiam ou se apaixonam pelo instrumento da censura a depender do fato de estarem ou não no poder em um determinado momento. Até pouco tempo atrás, nós, progressistas, odiávamos a censura e tínhamos como lema: censura nunca mais. Tão pouco tempo depois, tudo mudou.
Dizer que a regulação estatal se volta contra as big techs é outra falácia. Na verdade, seria correto dizer que a proposta visa “submeter” as big techs, mas não em detrimento delas mesmas. Submeter somente ao ponto de as transformar no útil instrumento de controle social do Estado, terceirizando para elas a censura estatal.
No final, todos seremos censurados por um funcionário da Meta ou do Google, ou por uma IA. Sei que alguns dirão que já somos por força dos interesses corporativos, mas… mas… este é outro enfoque, merece outro artigo. O certo é que agora, por um terrível trilha de implicações, podemos esperar que em breve as empresas que controlam as redes sociais passem a usar os parâmetros definidos pelo Estado e atuarem como agentes do Estado, não somente vigiando nossos conteúdos, como censurando e silenciando-os, e talvez nem tomemos conhecimento disto.